terça-feira, novembro 29, 2005

Então eu conto: acendi um cigarro e mantive-me em pé. Olhei à volta e vi-a. Fui ao seu encontro sem saber bem o que dizer. Saiu-me aquilo! Podia ter dito outra coisa qualquer, mas não... a minha embriaguez fez-me grunhir umas palavras sem nexo, mas que para mim, faziam todo o sentido. Agarrei-lhe a mão e puxei-a para a porta. Não percebi por que razão ela estava a fazer-se difícil a todo o meu charme. Achei uma ofensa e, pelo que me lembro, ela fez um movimento brusco e soltou-se. Já não tinha discernimento nem forças nem lucidez suficientes para correr atrás... deixei-me ficar, quieto, encostado ao bar e pedi mais um gin - Puro sff! Foi então que o Segurança me arrastou para a rua e me deu um murro no estômago que me fez vomitar tudo o que lá havia. Rebolei pelas escadas e só me lembro de acordar, imóvel, no hospital. Não consigo andar. Agora, a minha vida é uma existência. Preciso de ajuda para tudo e tudo parece tão complicado! Os meus dias são passados a pensar como poderei voltar atrás no tempo... como posso evitar a estupidez que cometi, como uma coisa que me parecia inofensiva me acabou com a alegria...
Pronto, já contei. Agora, miúdo, vê se pensas bem nas consequências que os teus actos podem ter!

sexta-feira, novembro 25, 2005

E agora que te tinha deixado ir, descobria em mim uma coisa que não pensei existir: o desespero. Escorreguei pela porta por onde saíras minutos atrás e deixei-me ficar. Posição fetal. Chão frio. Lágrimas infinitas. Horas depois, atendi um telefonema do serviço: hoje não posso ir e amanhã logo se vê. A minha mãe sofria por ver-me assim. O meu cão deitado aos meus pés - fidelíssimo como só os cães podem ser. Comecei a gostar de estar assim: vegetal. A cabeça deixou-se consumir por talk shows disparatados que ocupavam as tardes da tv e voltei à vida. Lentamente. Fiz uma viagem sem destino por alguns sítios de Espanha. Encontrei pessoas. Reencontrei-me e percebi que não tinhas que ser tu a preencher os meus dias. Eu conseguia fazê-lo sozinho. Amores há muitos...

quinta-feira, novembro 24, 2005

Tínhamos bebido pints até às tantas. Discutíamos os filmes do Wong Kar Wai com a seriedade possível. Eu preferia o In the mood for Love e ele o Chungking Express. Apagaram-se as luzes do pub e já não havia autocarros que me levassem de volta a casa. Acompanhei-o com o receio legítimo de quem acompanha um quase desconhecido. Eu já sabia como aquela noite ia acabar... e era isso que tinha procurado naquela cidade onde a vida é mais fácil: o poder de ser verdadeiramente livre sem ninguém questionar! A conversa fluiu noite fora, houve chá às 5h da manhã e do Kar Wai passámos às sitcoms americanas que ambos consumíamos compulsivamente.
Não houve sexo. Apenas leves insinuações. Houve uma intimidade estranha, uma aproximação quase sexual, mas sem actos: só palavras. Houve qualquer coisa de mais profundo a nascer ali, eu senti! Foi então que amanheceu e eu saí apressadamente. Apanhar o autocarro, chegar a casa, tomar um duche, sair para o emprego e continuar...como sempre foi e será!

terça-feira, novembro 22, 2005

Escrevo-te, amiga, para te dizer que a vida por aqui não está fácil. Todos têm fome e não há o que comer. Todos têm sede e a água está a acabar-se. Por sorte, o carteiro que vem da cidade uma vez por semana, parou aqui hoje e assim te chega esta missiva que é quase um pedido de socorro. Eu sei que a culpa é minha - eu é que quis vir. Mas não estava preparada. Penso que nunca ninguém estaria preparado para tamanha miséria. Dentro de duas semanas volto para casa e este pesadelo vai acabar. Mas...e quem fica? Quem não tem lugar para onde voltar? O que lhes acontece. Aqui morrem crianças todos os dias, estão doentes e não há ciência ou tecnologia que aqui chegue para os salvar. O que vamos fazer, amiga? Simplesmente ignorar e seguir em frente? Preocuparmo-nos com a blusa que comprámos e não nos fica bem ou com aquele creme que encomendámos há mais de um mês e continua esgotado?...Talvez...talvez seja melhor, sim!

sexta-feira, novembro 18, 2005

O que é que eu fiz da minha vida? Escondi-me num sítio onde só os mais audazes me podiam encontrar. Regozijava-me com isso até perceber que o fio que me ligava à Vida Real se foi desgastando e acabei por perder muitas coisas importantes. Agora o pouco que tenho basta-me, mas há em mim uma insatisfação constante que me faz sonhar com lugares para onde me dirijo, onde acabo por viver uma vida paralela e onde sinto a possibilidade de voltar a ser feliz. Arriscar...é preciso?

sexta-feira, novembro 11, 2005

Ainda ontem lhe estendia a mão para a ajudar a descer do comboio e hoje já não a encontrava. Tentou procurá-la no quiosque, na frutaria ao lado, mas em vão. Ela saíra da sua vida do mesmo modo como entrara: inesperadamente! E sentia uma angústia que lhe crescia no peito. Não falava, apenas corria as ruas do bairro à procura daquela que havia sido a sua musa naquele Verão. Precisava encontrá-la. Era urgente. Não tinham falado, mas sorriam quando se cruzavam e os olhos falavam por si: olhares daqueles só tinha visto no cinema! Uns dias depois ela voltou, ficou parada no passeio à sua procura...Foi ao quiosque, à frutaria do lado, mas em vão. Encontrou-o muito mais tarde à porta do cinema, sentado nas escadas escrevendo em guardanapos de papel com um lápis amarelo. As palavras mal se percebiam. Eram gatafunhos que procuravam explicação para o que lhes tinha acontecido. E o que lhes acontecera? Agora que estavam juntos e falavam, falavam perceberam que era o amor que lhes tinha acontecido. O amor, o amor eterno...enquanto durou!

terça-feira, novembro 08, 2005

Cantava hinos à alegria a cada meia-hora. Não sei se por convicção ou apenas para se convencer que era feliz. Uma amnésia controlada apagava-lhe da memória as coisas más da vida. Todas. Era um pateta. Um Ignorante. Convencido de que era um optimista...coitado! Depois, despromoveram-no a estafeta. Continuou a fingir que não sabia e apresentava-se na repartição todos os dias da semana. Excepto às sextas.
Os colegas, por pena, deixavam-no ficar. O chefe, por enfado e prepotência, correu com ele num ataque de ira que fez correr rios de tinta: que era um insensível, não entendia que o outro era um palerma.
O palerma processou o chefe. Os colegas apoiaram-no. Ganhou. Voltou à reapartição. E continua a cantar hinos à alegria a cada meia-hora...